Mitos sobre a TCC: para além dos limites da abordagem clássica (2)

Alguns dos outros mitos que mencionei na postagem anterior:

2. Governa o sujeito.

Governar o sujeito significa dar diretrizes a ele, dar um direcionamento. Governar, de acordo com o dicionário da Academia Brasileira de Letras (ABL, 2008) significa "exercer o governo de", "ter o controle ou a direção de", "controlar, dominar". No caso ao qual está se fazendo referência aqui, o terapeuta teria o controle ou a direção da terapia; controlaria ou dominaria as sessões, não levando em conta a participação do cliente de forma ativa.
A TCC, na realidade, não se propõe a controlar ou dominar. Pelo contrário. Há um princípio do trabalho em TCC denominado empirismo colaborativo, que é descrito em diversos livros e artigos sobre a abordagem. Beck, Rush, Shaw e Emery (1997) no clássico Terapia Cognitiva da Depressão apontam que terapeuta e paciente formam uma "equipe" no sentido de trabalharem juntos com o intuito de acessar conteúdos do paciente (pensamentos, sentimentos, dados históricos que levam ao entendimento das crenças etc) úteis para o entendimento e posterior intervenção eficaz.


 Os autores apontam ainda que cada etapa da terapia é utilizada para desenvolver e aprofundar a colaboração no tratamento. Sabemos que este aspecto é fundamental para o sucesso em relação a qualquer caso. Burns e Auerbach (2005) apontam ainda que uma relação bem estabelecida por meio de colaboração e empatia por parte do terapeuta potencializa o efeito de técnicas utilizadas posteriormente. Estando o sucesso da terapia atrelado ao componente colaborativo da abordagem, faria sentido dizer que a TCC "governa o sujeito?

3. Condiciona as pessoas.

Esta é uma das principais críticas direcionadas à abordagem cognitivo-comportamental. Grande parte das pessoas que utilizam isso como "argumento" para "provar" que a TCC é pior do que outras abordagens estão pensando somente em dois pesquisadores: Pavlov e Watson.
Pavlov era um fisiologista russo famoso por suas pesquisas sobre o condicionamento clássico feita com cães e que inspirou outros pesquisadores da área de psicologia a desenvolver estudos sobre o comportamento humano. A ideia de Pavlov era simples em essência. Se colocamos pó de carne perto de um cão, ele irá salivar. Se tocamos um sino ou acendemos uma luz, ele não irá salivar (poderá levantar as orelhas ou contrair as pupilas, mas não irá salivar). Se colocamos o pó de carne junto com o barulho do sino ou a luz, ele irá salivar (por causa do pó de carne). Com o tempo, de tanto apresentar pó de carne e estímulos neutros (em relação à salivação), o animal irá salivar só com o barulho do sino ou com a luz. O estímulo que era neutro antes, agora é condicionado. Eis o princípio do condicionamento clássico. 
Mas para o que usamos isso em TCC? De certo não é para condicionar os pacientes nesses moldes (imagine se levaremos pizza ou fondue de chocolate e um despertador para o consultório?!). Brincadeiras a parte, a teoria de Pavlov serve para nos ajudar a explicar alguns aspectos relacionados a problemas atuais de determinado paciente. Uma pessoa pode aprender a ter determinado medo por conta de um condicionamento. Isto não quer dizer que a única forma de uma pessoa desenvolver medo é por via do condicionamento. Nos cursos de formação e especialização em TCC ensina-se nas primeiras aulas as teorias de Pavlov e Skinner, com o objetivo de embasar teoricamente os alunos para algo que vem depois. Mas a TCC está longe de ser somente essas teorias.
O próprio Skinner é um teórico e pesquisador que sofre muito preconceito por ter se inspirado na ideia de Watson de estudar o ser humano cientificamente. Watson, que foi o precurssor do behaviorismo, ao lançar o clássico artigo "A Psicologia como o Behaviorista a vê" - também conhecido como "o manifesto behaviorista" - foi o criador do que se conhece como Psicologia do Estímulo-Resposta, ou simplesmente Psicologia S-R. A proposta de Watson era a de se estudar o ser humano simplesmente pelo que podemos observar. O indivíduo emite uma resposta perante um determinado estímulo. Esta proposta de fato é reducionista, mas serviu de gancho para outros pesquisadores iniciarem trabalhos bem mais profundos, como é o caso de Skinner.
Com o tempo, diversos outros autores foram incorporando suas ideias e achados ao campo do que futuramente se conheceria como cognitivo-comportamental. Abaixo estão alguns desses contribuidores.


Nesta figura podemos ver dentro da caixa vermelha Pavlov e Watson. Muitas pessoas pensam que a TCC resume-se a eles dois apenas. Eles deram alguma contribuição para o campo da psicologia comportamental e têm grande valor histórico, mas as principais ideias do que se conhece hoje como TCC foram acrescentadas depois, sobretudo a partir dos anos 60 quando Ellis, Beck, Meichenbaum, Goldfried e outros surgiram, dando contribuições que levaram ao que se conhece como terapias cognitivo-comportamentais. Hoje, pode-se dizer que as TCCs trabalham com conceitos como crenças centrais, esquemas desadaptativos remotos, crenças metacognitivas, mindfulness, crenças irracionais, regulação emocional, resolução de problemas, aceitação e compromisso etc. Esses conceitos ou teorias envolvem aspectos extremamente profundos e que muitas vezes requerem grande nível de habilidade como terapeuta e que, certamente, estão muito além do condicionamento.
O livro organizado por Keith Dobson "Manual de Terapias Cognitivo-Comportamentais"  ilustra algumas TCCs. Além disso, a coleção "Distinctive features in CBT" organizada por Windy Dryden, contém um volume para cada abordagem desde as mais clássicas como a beckiana e a TREC até as mais recentes como a terapia metacognitiva, a terapia focada na compaixão e a terapia dos esquemas.


Referências:

Beck, A.T., Rush, A.J., Shaw, B.F., & Emery, G. (1997). Terapia Cognitiva da Depressão. Porto Alegre: Artmed.
Dobson, K.S. (org.). (2006). Manual de Terapias Cognitivo-Comportamentais.  Porto Alegre: Artmed.

Referência Complementar:
Coleção Distinctive features in CBT - Vários volumes. Coleção organizada por Windy Dryden (somente em inglês).


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